Entrevista de Manuel Matos a Paulo Machado - Autor do teclado virtual: Virtec

12 de Dezembro de 1998

Manuel Matos: Coube-lhe a si, amigo Paulo, ser a primeira personagem desta série de casos reais. (Coube-nos a nós esse privilégio.) Daí, o nosso agradecimento preambular - e que se estende a todos os futuros participantes - pela sua disponibilidade.

Paulo Machado: Eu é que agradeço por me terem escolhido para dar o `pontapé de saída'. É, talvez, uma forma ligeira de começar esta rubrica, pois sou ainda muito `verde' nestas andanças, espero por isso não vos desiludir, pois a minha reduzida experiência não me permite ter, deste sector social, uma visão abrangente e esclarecida.

MM : Antes de mais, penso que seria importante o Paulo Machado partilhar connosco os dados por que se identifica - idade, grau académico, profissão, doença.

PM : Tenho 34 anos, sou licenciado em Ciências Farmacêuticas - Ramo: Farmácia Industrial, pela Faculdade de Farmácia do Porto, actualmente sou Director Técnico de uma empresa distribuidora de medicamentos de uso veterinário e tenho Esclerose Lateral Amiotrófica.

MM : Quando se manifestou e como?

PM : Os primeiros sintomas surgiram no Verão de 1988. Estava eu na praia quando verifiquei que, devido ao frio da água, não conseguia unir os dedos da mão direita.

No início essa dificuldade desaparecia quando a mão aquecia, depois tornou-se pouco a pouco permanente ao mesmo tempo que as cãimbras e a atrofia muscular se agravavam.

Da mão direita passou para o braço, depois o mesmo aconteceu à mão e braço esquerdo e só então, cerca de 3 anos e meio depois, afectou as pernas. Actualmente afecta-me, praticamente, todos os músculos do corpo, inclusivamente os da fala, deglutição e respiratórios.


Felizmente (nos momentos mais difíceis acho que infelizmente ...) a doença tem tido uma evolução muito lenta, pois ao fim de 10 anos ainda atinjo o valor 16/40 da Amyotrophic Lateral Sclerosis Functional Rating Scale.

A baixa idade em que se manifestou (23 anos) e a evolução lenta, fazem de mim um caso relativamente raro, pois a doença normalmente manifesta-se entre os 40 e os 70 anos e costuma ser fatal em 2 a 5 anos após os primeiros sintomas.

MM : Ou seja; o Paulo pode dizer que tinha uma vida antes da declaração da doença e adquiriu uma outra, depois. Hoje, alguns anos volvidos, quais lhe parecem ter sido as consequências mais dolorosas dessa mudança? (Procure referir-se apenas às duas mais traumatizantes.)

PM : Têm sido muitas e variadas as experiências dolorosas ao longo dos últimos 10 anos.


A mais dolorosa foi, sem dúvida, a perda da independência e da liberdade de movimentos, e, consequentemente, dos pequenos prazeres (para não falar dos grandes ...), que temos tendência a considerar garantidos para toda a vida e quase nunca lhes damos valor (até que os perdemos), como : pegar numa esferográfica e assinar o nome, comer e beber pela própria mão, andar, correr, falar e ser compreendido sem ter que reduzir a ideia ao mínimo de palavras, por falta de fôlego, pegar num objecto e sentir-lhe a textura e as formas, pegar numa criança ao colo, tocar uns acordes na viola (mesmo que desafinados :-). Enfim, a lista é infinita.

É-me, pois, muito dificil ficar dependente de alguém para fazer as tarefas mais insignificantes e simples e ter uma vida cada vez mais minimalista e reduzida a pouco mais do que a satisfação das necessidades básicas.

A mente continua a funcionar a 100%, mas muitos dos pensamentos, ideias, sentimentos e emoções acabam por não se manifestar, ou são mesmo auto-censurados, pois nunca terão viabilidade.

A segunda consequência foi deixar de `esperar ansiosamente pelo futuro', pois, dado o carácter evolutivo da doença, sei que, se hoje estou mal, amanhã estarei, provavelmente, pior.

Dir-me-ão que esta é uma visão pessimista da vida. É verdade (por isso, é dolorosa ), mas é também uma forma de `auto-protecção', porque já estou cansado de alimentar falsas esperanças e a queda de uma esperança é sempre mais dolorosa que a anterior.

Li uma vez que `mais vale não ter esperança nenhuma, do que ter uma mão cheia de falsas esperanças'. Na altura não concordei com a frase, mas hoje sei o quanto é verdadeira.

Além disso, apesar da minha formação académica (ou por isso mesmo...), não espero, num futuro próximo, grandes avanços a nível de tratamento ou cura para esta doença (recentemente experimentei o primeiro medicamento específico para a doença e que supostamente atrasaria a sua evolução, mas o resultado foi o oposto, passei de 20/40 para 16/40 em apenas 2 ou 3 meses).

MM : Claro que o computador, como para todos nós que aqui estamos, é uma ferramenta (de trabalho, de lazer, de investigação...) privilegiada. Como se relaciona fisicamente com ele?

PM : A minha ligação física ao computador é feita, apenas, através do rato, uma vez que já não consigo usar o teclado.

MM : Recorre a algum hardware ou software especial? Fale-nos disso.

PM : Sim. Para escrever recorro a um teclado virtual de ecrã (Virtec 2.0). O Virtec é um programa que eu próprio fiz, quando praticamente já não usava o computador, devido à cada vez maior dificuldade que tinha em escrever com o teclado. Curiosamente, o que mais me incentivou a fazer o Virtec, foi o desejo de me ligar à Internet e "partir desta para melhor" :-).


Fui programador profissional durante 5 anos, fiz dezenas de programas, quase todos de gestão comercial ou industrial. Este é o único que fiz para uso pessoal, mas é já o mais importante do meu computador; sem ele, os outros de pouco, ou nada, me serviriam.

Aproveito para dizer, a quem estiver interessado, que o Virtec 2.0 está disponível, como Careware, na minha página pessoal em
http://homepage.esoterica.pt/~shannbyl/.

MM : Já que se referiu à Internet; desde quando a usa? Isso mudou algo na sua vida?

PM : Infelizmente só comecei a usar a Internet em Maio de 98. A Internet já é, para muitos, uma ferramenta importante, mas para uma pessoa com mobilidade reduzida, como eu, ela é muito mais do que isso. Ela é, muitas vezes, o único meio disponível para encontrar toda a informação que procuro, trocar opiniões com quem tem os mesmos interesses e problemas e é um meio rápido e fácil de contactar (e fazer) amigos.

MM : Tenho para mim que tudo possui duas vertentes contraditórias, ou seja, que nada é completamente positivo nem completamente negativo. Nesta perspectiva, e se algum houve, qual foi o lado positivo que a «nova vida» lhe trouxe?

PM : Concordo inteiramente consigo, tudo tem um lado positivo, embora nem sempre o consigamos / queiramos ver.


No meu caso, houve uma série de factores, nem todos directamente relacionados com a doença, que me proporcionaram experiências muito enriquecedoras e me fizeram ver que há outras realidades para além da minha e, por isso, tento ser mais tolerante quanto à diferença de atitudes, opções e opiniões.

Sou, hoje, muito mais sensível e cuidadoso no emprego de certas palavras, como amizade, solidariedariedade, amor, fraternidade, etc, que estão tão desvirtualizadas e banalizadas por serem tão frequentemente ditas, mas pouco ou nada sentidas e praticadas.

MM : Depois do choque ao saber que tinha a doença que tem, com que dificuldades de ordem prática se confrontou?

PM : Não sei se se refere à falta de apoios por parte de entidades estatais ou privadas.


Isso ainda não senti, talvez porque, praticamente, ainda não os
requeri, e os poucos que solicitei foram-me concedidos sem dificuldades anormais a um estado burocrático, centralista e desprovido de meios técnicos.


Temo estar agora a entrar na fase em que esses apoios são bem-vindos. Claro que deparo, quase todos os dias, com as famigeradas barreiras arquitectónicas, algumas completamente incompreensíveis e absurdas como as de alguns hospitais, clínicas e centros de saúde.

MM : Apesar de tudo, considera que o que lhe aconteceu foi uma tragédia? Gostava que falasse um pouco sobre isso.

PM : Foi uma reviravolta de 180º, relativamente ao que tinha sonhado para mim, que me trouxe tudo aquilo que mais temia e numa idade em que as expectativas e esperanças são muitas.


Estava na linha de partida para a grande jornada que é a vida, tinha tudo para que fosse uma agradável aventura e, de repente, tudo foi por água abaixo. Dei por mim alinhado para iniciar uma aventura que não era a minha, para a qual não estava preparado, que aponta para uma meta assustadora e por caminhos muito dificeis.

Mas, mesmo assim, não é uma tragédia.

MM : A propósito; o nome Stephen Hawking diz-lhe alguma coisa?

PM : Ouvi, pela primeira vez, este nome pouco depois de me ter sido diagnosticada a doença.


Fiquei um pouco surpreendido com a coincidência do caso clínico, pois temos a mesma doença, que nos afectou quase na mesma idade e tem, em ambos, uma evolução anormalmente lenta, embora ele esteja doente há muito mais tempo que eu.

Ele é apontado, por muitos, como um exemplo a seguir por todos os que têm algum tipo de deficiência, talvez porque, apesar de altamente incapacitado fisicamente, casou, tem uma família e tem um emprego que o realiza e para o qual praticamente só precisa da inteligência. Mas o mais importante foi ter conseguido que, e segundo o que ele disse, a vida que tem não seja muito diferente da que teria sem a doença.

Isto é, sem dúvida, um feito notável, mas convém não esquecer que é o resultado da feliz conjunção de múltiplos factores, como: ter uma personalidade sedentária e intelectual, ter uma inteligência acima do normal, ter paixão pela física teórica, ter encontrado as pessoas certas no tempo certo, viver num meio sócio-cultural aberto e despreconceituoso e, claro, muita força de vontade.

Ora, nem todos têm estes atributos, interesses e "sorte", por isso não devemos deixar que nos imponham expectativas que não desejamos ou não podemos alcançar, por muito que nos esforcemos. Saber reconhecer os próprios limites é meio caminho para o equilibrio emocional.

MM : Hoje, como pessoa com necessidades especiais, quais são as grandes lutas?

PM : Visto não haver muito a fazer a nível médico, a minha luta diária é aprender a viver o melhor possível com as limitações que vão surgindo no dia-a-dia, sem tentar atribuir culpas à sociedade pelas suas imperfeições, pois se nenhum de nós é perfeito, porque haveria a sociedade de o ser ?

MM : Este nosso diálogo está a ser acompanhado por muita gente que terá passado experiências semelhantes. Haverá algo que considera importante dizer-lhes?

Como não gosto de dar conselhos, só lhes posso dizer aquilo que faço, elas concordarão, ou não, comigo.

Quando, em Londres, me confirmaram ( com reticências ) o diagnóstico, prometi a mim mesmo "vender" o mais caro possível o bem mais precioso que possuía - a saúde.

É isso que tenho feito desde então, usando até ao limite as forças que me restam, mesmo que me chamem teimoso e orgulhoso por não pedir ajuda. Também decidi não me esconder, embora me doa muito ser olhado, ou com olhos de "carneiro mal morto" a dizer - Coitadinho -, ou com olhos de "boi a olhar para um palácio" a dizer - Que é aquilo ?

De resto, tento gozar os pequenos prazeres que aparecem e não olho para trás, o passado nunca me atraiu, e evito olhar muito para a frente, só o necessário, pois arrisco-me a ver o que não quero.

MM : Resta-me agradecer mais uma vez a sua disponibilidade e, se me permite, dar-lhe um grande abraço solidário. Independentemente das nossas limitações, as nossas vidas valem a pena e tanto mais quanto nós formos unidos na senda de um aspecto da evolução humana que se encontrou estagnada durante séculos que equivalem a uma eternidade.

PM : Agradeço e retribuo o abraço e desejo a todos, com ou sem limitações, com ou sem deficiências, doentes ou não, uma vida plena de paz interior e o máximo de saúde.



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